Uma das discussões mais inúteis da humanidade desde “o certo é biscoito ou bolacha?”.

Vejo constantemente vários desenhistas defendendo, nas redes sociais, que o que é preciso para ser um bom profissional é “prática”, não é “dom”.

Eu até entendo essa afirmação. Gente que olha um desenho bem feito e diz “queria ter esse dom”. Entendo porque isso pode revoltar o desenhista que produziu aquela arte. Pode passar a impressão de que ele simplesmente “nasceu sabendo” e não precisou ficar horas na prancheta praticando, todos os dias.

Mas não é esse o caso. Existem desenhistas e desenhistas. Assim como existem músicos e músicos. Qualquer um pode se inscrever num curso de violão ou guitarra. Mas poucos se tornarão um Jimi Hendrix, Eric Clapton ou B. B. King.

Então, caro colega desenhista, não fique nervosinho quando ouvir alguém dizer “eu queria ter esse dom”. Com certeza você também gostaria de ser mais hábil em outras coisas. Tocar guitarra, talvez? Jogar futebol? Ser bom em matemática? Ser mais organizado? Sim, as pessoas nascem com dons. Mas é claro que não adianta você ter um dom e não exercê-lo. Aí, sim, entra a parte da “prática” e é sobre isso que é esse post.

Como roteirista e editor de quadrinhos, vocês devem imaginar que eu tenho contato com muitos desenhistas. E posso afirmar com segurança que há desenhistas de todos os tipos. O mesmo pode ser dito de qualquer profissional, em qualquer ramo: seja na arte, nos esportes, nos negócios, na área acadêmica. Há aqueles que realmente possuem um dom, se dedicam àquele dom, amam o que fazem e ficarão felizes para o resto de suas vidas fazendo o que gostam. Esses são raros. Esses são os Jimi Hendrixes de suas áreas.

Há aqueles que até tentam, mas não conseguem. Por inúmeros motivos. Falta de sorte, falta de uma rede de contatos que faça diferença e alavanque sua carreira, ou mesmo, falta de talento. Talvez você simplesmente não tenha nascido para aquilo. Não há vergonha nenhuma nisso. Quantas histórias não temos por aí de pessoas que só ficaram famosas depois dos seus 40? 50? 60 anos? Talvez este seja o seu caso.

Mas há o pior caso. Aqueles que não praticam a sua arte. Sim, conheço vários desenhistas de talento. Mas o cara nunca fez um curso para se aperfeiçoar, faz um rabisco aqui e ali, está sempre com “o” projeto megalomaníaco na cabeça, que vai “revolucionar o mercado de quadrinhos do mundo” e que “ninguém nunca viu nada igual”. Eles certamente esperam que a Marvel ou a DC aparecerão um dia batendo na porta de suas casas para descobrirem os seus talentos.

Se você se identificou com esse último parágrafo, meu amigo, não leve a mal o que eu vou falar agora: mas você é preguiçoso. Você está se contentando com a mediocridade. Não, não há nada de errado em você querer viver o resto de sua vida levando sua arte como hobby, trabalhando vendendo coco na praia ou miçanga na rua. Sério mesmo. Mas se você tem uma fagulha de ambição que seja nesse seu âmago, então levante a bunda da cadeira e comece a correr atrás.

Agora que eu percebi que comecei a escrever esse post com uma ideia completamente diferente e acabou virando um daqueles discursos motivacionais. Urgh. É, eu também não curto esse tipo de coisa. Mas já que comecei, agora vamos até o fim.

Falando em discursos motivacionais, frequentemente eu vejo artistas famosos falando em como “largaram aquele emprego de que não gostavam para correr atrás do sonho”. O mais recente foi o do anão do Game of Thrones, mas se não me engano, um vídeo parecido do Jim Carrey estava circulando não faz muito tempo, com a mesma pegada.

Isso tudo é muito bonito. “Comecei com dois dólares no bolso e agora vejam onde eu estou”. Mas calma lá que as coisas também não são bem assim. Sim, elas não caem do céu. Sim, ninguém vai bater na porta da sua casa para lhe dar um contrato vitalício com a Marvel. Sim, você tem que correr atrás de seus sonhos, ou eles jamais irão se realizar. Mas, não, não jogue tudo para o alto e pense que vai dar tudo certo, só porque aquele ator ou atriz famosos disseram isso.

Já dizia um sábio, mantenha a cabeça nas nuvens, mas os pés no chão. Sonhe, sonhe alto. Mas saiba o que você vai precisar para atingir os seus objetivos. Suponha que você more no porão da casa dos seus pais. Você não paga aluguel, luz, telefone. Mantém um bico como balconista de uma loja de parafusos só para ajudar a pôr comida em casa. Mas o seu sonho é trabalhar como desenhista, vender sua arte, ter seu próprio estúdio.

Um belo dia, então, você decide correr atrás desse sonho. Legal! Você sai de casa e monta um estúdio. E agora? Vai ficar esperando os clientes virem lhe procurar? Ou vai atrás deles? Um erro muito comum que eu sempre vejo é que o cara abriu o estúdio dele, então agora ele tem aluguel para pagar, condomínio, internet, telefone. Se abriu uma empresa, vai ter que pagar contador, imposto disso, imposto daquilo, etc. Fora a despesa inicial para comprar os móveis para o escritório, mesa de luz, scanner, computador e tudo mais.

E se agora ele está morando em outro lugar, que não o estúdio, nem a casa dos pais, as despesas dobram. Então, antes de sair jogando tudo para o ar, faça uma conta de padeiro: pesquise tudo o que você vai precisar e some todas as despesas. Você vai ter um valor “X” que é o mínimo que você precisa para se manter. Mas você não vai querer ganhar “X”. Você vai querer ganhar “X+L” todos os meses, onde “L” é o seu lucro, que você vai usar para ir ao cinema, sair com a namorada, beber com os amigos e, o mais importante: guardar para o futuro. Invista, seja na poupança, num fundo de investimento, o que seja. Lembre-se, um dia você terá 80 anos e precisará desse dinheiro.

Certo, você já sabe que vai precisar fazer, pelo menos “X” por mês. Agora você precisa se perguntar se conseguirá fazer isso, sendo um artista novato no mercado, ou não. Se a resposta for “não”, como eu imagino que seja, não se desanime. Ainda restam alternativas.

Talvez seus pais tenham uma grana sobrando e topem te dar uma ajuda financeira durante um ano. Talvez você queira fazer um empréstimo em um banco. Essa opção, não recomendo: você já está começando no zero a zero. No momento em que fizer o empréstimo, você está começando no negativo. Mas, se somando a parcela do empréstimo no “X” e você ainda acha que dá conta, pode ser uma alternativa.

Por último, sempre há a opção de continuar no porão da casa dos pais e no emprego na loja de parafusos por mais um tempo. Agora, contudo, você tem um objetivo: passe a economizar, guarde um pouco por mês, até você ter o suficiente para poder abrir o seu sonhado estúdio. Difícil? É, sim. Realizar o sonho da vida nunca é fácil. Mas com um plano, a coisa não parece mais tão “irrealizável”, não concorda?

Se o que eu falei nos parágrafos acima é óbvio para você, ótimo. Significa que você, provavelmente, é da velha guarda e esse post não serviu em nada para você. Mas se você está começando agora, então pense a respeito. Isso tudo não é tão óbvio assim. Por quê? Simplesmente porque o brasileiro médio não sabe lidar com dinheiro.

Recentemente tivemos a situação do resgate das contas inativas do INSS. Li em algum lugar que a maioria das pessoas que fez o resgate usou o dinheiro para pagar dívidas. Isso ilustra muito bem o comportamento dos brasileiros de não saber administrar suas vidas financeiras. Lembre-se, a maioria das empresas que abrem no Brasil fecham em menos de um ano. Por conta disso.

Uma última dica e essa é, talvez, a mais valiosa: seja profissional. Uma vez que você tenha topado realizar um serviço, seja ele pagando R$ 1000,00 por página, seja R$ 10,00, ou seja de graça: cumpra prazos. O que mais temos no mercado hoje são desenhistas que não sabem se organizar para cumprir prazos, pergunte a qualquer editora.

Eu diria que essa qualidade é ainda mais importante do que ser talentoso. Eu não gostaria de ter um Brian Bolland na minha folha de pagamento se o cara só me entregasse 1 página por ano. Entende o que eu digo?

Enfim, respondendo à pergunta: “É dom ou é prática?”, eu diria que é os dois. E mais ainda: responsabilidade. Boa sorte e agora vá correr atrás dos seus sonhos!

 

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