Novo filme de Willem Dafoe disponível no Prime Video não é mero suspense, mas filme repleto de simbolismos e temas complexos.

A religião existe desde que o mundo é mundo, oferecendo respostas fáceis quando a Ciência não consegue ou não pode explicar. Um raio cai numa árvore em uma tempestade? Seres primitivos acreditariam que se trata da fúria de algum deus. Hoje, sabemos melhor o que causa isso.

Mas embora a Ciência tenha evoluído, oferecendo mais respostas, e a cada respostas, mais perguntas – e essa é a beleza da coisa – a religião se fragmentou em diversas outras facetas. Algumas delas mais manipuladoras do que outras, se é que vocês entendem onde eu quero chegar. No entanto, a religião tem um aspecto que jamais será abrangido pela Ciência, que é a questão da espiritualidade do indivíduo. E é justamente nesse ponto que reside minha interpretação do filme Dentro, do diretor Vasilis Katsoupis.

Dafoe interpreta Nemo, um ladrão de arte profissional em mais um trabalho comum. Auxiliado por alguém de fora, que ele chama apenas de “Número 3” pelo rádio, Nemo tem 8 minutos para coletar as obras de uma luxuosa cobertura, quando as coisas dão errado: o sistema de segurança falha e ele fica preso no local. Número 3 então o deixa por sua conta e risco.

Na superfície, vemos apenas o desespero de um homem tentado sobreviver sem água, com pouca comida e com a temperatura do apartamento oscilando o tempo todo, ora penalizando-o com calor insuportável, ora levando-o ao extremo frio.

A partir daqui contém spoilers, então prossiga por sua conta e risco.

No entanto, o filme é muito mais do apresenta em sua superfície. Já na sua introdução ele nos dá uma dica muito importante sobre o tema presente aqui, afirmando que quando ele era criança, sua professora pediu para que ele salvasse três coisas. Três é, frequentemente relacionado com espiritualidade. Na religião católica, temos a figura da Santíssima Trindade, representada por Pai, Filho e Espírito Santo.

Quando Nemo é abandonado pelo “Número 3” é que sua jornada começa. Isolado com seus pensamentos e desprovido de esperança, mergulhamos nas nuances de sua mente, com tomadas que vão além das paredes do apartamento e sobrecarregam o espectador de figuras que exigem interpretação. Não vou conseguir tecer comentários sobre cada uma delas, mas algumas merecem destaque.

Após algumas tentativas de sair pela porta da frente ou procurar outra saída, Nemo fica obcecado em remover uma luminária no teto quase inalcançável, pois acredita que a saída esteja ali.

A luminária não sai fácil. Ele primeiro precisa construir uma maneira de chegar lá, o que não se mostra tarefa trivial, empilhando móveis para improvisar uma “escada”. Ele alterna a árdua tarefa entre os momentos em que busca água, comida ou maneiras de sobreviver ao calor, ao frio e mesmo à solidão.

Uma vez alcançado o objetivo, ele ainda tem que quebrar o concreto ao redor da luminária quadrada, o que também não é fácil, apenas para descobrir uma placa de metal presa por porcas. Sem ferramentas adequadas para remover as porcas, a próxima etapa se mostra ainda mais desafiadora.

No entanto, a cada porca removida, Nemo tem um novo adereço para um estranho altar que ele começa a construir. Na parede atrás do altar, ele começa a fazer um complexo desenho com símbolos misteriosos.

Em certo momento, ele descobre uma porta oculta no guarda-roupa do dono do apartamento, que o leva a uma sala secreta. Lá, descobre uma réplica de borracha do corpo de seu “anfitrião”, prostrada como se fosse um cadáver. Acima dele, páginas de um livro, tão misterioso quanto o restante dos símbolos que vemos ao longo do filme.

Eventualmente, Nemo quebra sua perna, o que atrasa ainda mais a continuidade do seu trabalho para remover as porcas. Ele então tem ideia de fazer fogo para ativar o alarme de incêndio, o que só serve para inundar o apartamento com o sistema de irrigação anti-fogo.

Por fim, Nemo deixa uma mensagem na parede do apartamento para o dono encontrar quando retornar de sua viagem. Ele explica na mensagem a história sobre sua professora e lhe conta que, tal como ele um dia teve de escolher 3 coisas, ele agora lhe deixa 3 coisas, mas não diz o que é, deixando isso a ser interpretado pelo espectador.

Ele então remove a última porca e sai pelo buraco no teto. Final que pode deixar desapontado quem esperava por uma grande conclusão ou explicação final.

Contudo, se Nemo realmente está em uma jornada espiritual, como dá a entender na construção de seu altar, faz todo sentido que ele só consiga “ascender” quando ativa o sistema anti-incêndio. A “chuva” vem “lavar os seus pecados”.

Também cabe parar para pensar um pouco no nome do filme em si. “Dentro” não se refere ao fato do personagem de Defoe estar preso dentro de um apartamento. Talvez o autor queira simplesmente nos dizer que a força para vencermos nossos obstáculos venha de dentro, venha do espírito. Nemo constrói sua saída sozinho, apenas com sua força interior, sendo testado a cada etapa.

Antes de subir, no entanto, Nemo dá uma última olhada na “Bíblia” que achou junto ao “corpo” de seu “anfitrião”, intitulada de O Casamento entre o Paraíso e o Inferno . Nas páginas soltas, ele encontra a seguinte afirmação:

Os seguintes contrários são verdade:
1. O Homem não tem Corpo distinto de sua Alma.
2. A Energia é a única vida e é do Corpo.
3. A Energia é o Deleite Eterno.

Ele então enxerga uma garotinha, que ele tinha entendido com a filha do dono do apartamento em um dos quadros, olhando para ele e segurando um cachorro. Só então ele parte para remover a última porca.

Essa cena talvez seja a mais difícil de interpretar em todo o filme. Cabe lembrar que algumas cenas atrás ele vandalizou o quadro onde o dono do apartamento aparece com a garotinha, pintando chifres em sua cabeça e fazendo uma coroa na garotinha. Talvez ele enxergue o anfitrião como sendo o diabo. Nesse sentido, a garotinha e o cachorro são os guardiões dos portais do Inferno, esperando ele entrar.

Ora, mas ele não ascendeu ao paraíso? Ele não se arrependeu de seus pecados? Depende. Talvez na religião católica, sim. Mas nesse ponto ele não é mais católico, já que sendo abandonado pelo Espírito Santo, renegou sua religião e foi procurar outra, encontrando-a no estranho livro de páginas soltas com aquelas três enigmáticas afirmações.

Veja, é importante notar que ele só consegue ascender depois de passar pela “chuva” e depois de ler estes três princípios. Em um sonho que ele tem momentos antes, ele tenta deixar uma festa promovida pelo anfitrião subindo uma escada que não leva a lugar algum. Ele quer sair dali, ele quer ascender, mas ainda não está pronto. Não até conhecer a “verdade” trazida por aqueles três itens. Novamente, o tema da trindade.

E as três coisas que ele deixou? O altar, sua arte… e seu corpo, talvez? Já que a saída poderia simplesmente ser um simbolismo do espírito sendo ascendido.

Há diversas outras interpretações, seja do filme como um todo, seja de cada “pedaço” dele, pois simbolismo aqui é o que não falta. Mas gosto de pensar dessa forma: que Nemo conseguiu encontrar a redenção ao olhar para seu potencial interior, seu espírito ou o que quer que queira chamar. Fez isso sozinho, sem apoiar-se na religião.

Talvez seja essa a moral da história. Talvez, no dia em que as pessoas entenderem que a religião não é um meio de encontrar respostas fáceis ou de se comunicar com entidades em planos inalcançáveis, talvez quando entenderem que a religião é uma ferramenta para nos comunicarmos com nós mesmos, com nosso espírito, com nossa força interior, talvez nesse dia, o mundo seja um lugar melhor.

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