O Último Duelo conta a história real do último duelo sancionado pelo parlamento francês. Uma trama de traição, estupro e vingança, que ganhou um filme estrelado por Matt Damon e Adran Driver em 2021. Quais são, então, as diferenças entre o livro e o filme?

O livro, escrito por Eric Jager, é fruto de um extenso trabalho de pesquisa que e levou 10 anos para ser escrito. O autor esforça-se ao máximo em contextualizar o leitor à época em que se passa a história – séc. XIV, durante a Guerra dos 100 anos – sempre fornecendo detalhes sobre o sistema feudal, uma guerra x ou y ou um costume que era adotado pela sociedade.

De forma bem resumida, o que se sabe sobre esse duelo, de fato, é que um cavaleiro chamado Jean de Carrouges acusa seu ex-amigo Jacques Le Gris de ter estuprado sua esposa. A fim de fazer justiça, ele desafia o escudeiro para um duelo, em uma época em que essa prática já vinha caindo em desuso.

O Livro

O livro não é dramatizado e mais parece um documentário. O autor primeiramente oferece um relato sobre a época do feudalismo, a Guerra dos 100 anos e a realidade da França naquela época, para só então falar sobre a linhagem Carrouges e chegar na história sobre o cavaleiro e seu amigo Jacque Le Gris.

Explica que Carrouges tinha esposa e filho, que haviam sido levados pela doença, e que ele era muito conhecido por seu temperamento curto. A amizade dos dois começara a definhar quando Le Gris fora nomeado tesoureiro pelo suserano que ambos serviam, o Conde Pierre d’Alençon. Pouco a pouco, Le Gris vai se tornando o favorito do Conde.

A situação piora por conta de uma disputa sobre um terreno que há muito Carrouges estava de olho, chamado Aunou-le-Faucon. Ele tentara comprar tal terreno antes, sem sucesso, e quando conheceu sua nova esposa, Marguerite, tal terreno lhe fora prometido como dote. A promessa não apenas não foi cumprida, como o Conde acabou dando o terreno de presente a Le Gris como reconhecimento por seus préstimos.

Furioso, Carrouges ainda tentaria processar o Conde e apelar para o Rei, mas acabaria perdendo a causa, o que só serviria para afastá-lo ainda mais de seu suserano. O fato de ele ter casado com a filha de um traidor – um homem que traíra o Rei por duas vezes – também não deve ter ajudado muito.

Uma segunda disputa ocorre quando o pai de Carrouges morre. Certo de que herdaria sua propriedade, o cavaleiro estava ansioso para aumentar suas posses. Mas isso não aconteceu e o Conde pegaria o terreno para si, algo perfeitamente permitido naquela época. Apesar de Le Gris não ter tido nada a ver com o episódio, provavelmente teria ficado ao lado de seu senhor, já que não faria sentido favorecer o velho amigo, que acabara se tornando seu rival.

Uma tentativa de reconciliação foi feita através de um amigo em comum que ambos tinham, durante a festa para comemorar o nascimento de seu primogênito. Os dois homens encararam-se e acabaram apertando as mãos. Carrouges pede a Marguerite que beije Le Gris como prova da trégua, um costume da época. Foi a primeira vez que Le Gris vira a esposa do colega.

O livro ainda descreve em detalhes a campanha na qual Carrouges envolvera-se contra os ingleses, na qual acabaria traído pelos escoceses e ganharia seu título de cavaleiro. Ao retornar, mesmo com a saúde debilitada, foi ter com o Conde e provavelmente encontrou Le Gris na corte. Não se sabe ao certo que palavras foram trocadas entre os dois, mas o livro especula que Carrouges deve ter irritado o rival uma vez mais. Pois, quando este partiu para Paris para tratar de negócios, foi quando seu velho “amigo” viu a oportunidade para agir.

Sabendo que Marguerite estaria sozinha em seu castelo, ele aproveitou para, junto com um homem chamado Adam Louvel, invadir seu refúgio e atacá-la. Mesmo resistindo bravamente para manter sua honra, Marguerite acabaria sendo violentada por Le Gris e, o que é pior, teria que manter-se em silêncio por dias até o retorno de seu marido.

O livro também explica em detalhes como era visto o estupro na época. Dentro do casamento ele era visto como algo “legal”, pois as esposas “deviam favores” a seus maridos. Fora do casamento, contudo, era um dos poucos crimes passíveis de pena de morte. Chamado de “raptus”, poderia significar tanto o ato sexual forçado quanto o crime de sequestro.

No entanto, apesar de ser visto como algo abominável (quando praticado contra uma mulher da nobreza, obviamente), também era encarado muito mais como um crime contra seu guardião masculino do que contra a mulher propriamente dito.

Ao saber do crime, Carrouges provavelmente deve ter visto uma oportunidade ali para se vingar de Le Gris, já que o raptus era um dos poucos crimes que ainda poderiam ser resolvidos através de um duelo. O autor também gasta várias páginas para explicar as origens dessa prática bárbara e o contexto da França nesse quesito.

Apesar de não ter sido oficialmente abolido, havia mais de 80 anos que o parlamento não autorizava a realização de duelos. É claro, após o episódio de Carrouges contra Le Gris, deve ter havido outros, dentro e fora da França, mas mais para resolver disputas de honra do que criminalísticas. Este fora, portanto, realmente o último duelo sancionado pelo parlamento francês.

O que se passa a seguir é descrito tanto no livro quanto no filme de maneira bastante parecida: Marguerite conta a seu marido o que aconteceu e no dia seguinte eles realizam uma reunião de família para decidir o que fazer. Carrouges formalmente acusa Le Gris do crime, mas devido ao histórico com o Conde Pierre, já deveria imaginar que as coisas não seguiriam um rumo que o favorecesse.

Como mandavam os costumes da época, o suserano chegou a marcar uma audiência para que acusador e acusado relatassem suas versões, mas nem Carrouges nem sua esposa compareceram. O livro especula se eles tiveram dificuldades de chegar a tempo na hora marcada, dadas as condições precárias de se viajar naquela época, por conta do clima invernal e das estradas horríveis, ou se foram propositadamente impedidos, ou ainda, decidiram simplesmente não atender ao pedido, sabendo do resultado provável. Fato é que Carrouges decidira apelar para o Rei.

Marcar um duelo, mesmo naquela época, não era algo simples e nisso o livro entrega todo o processo nos mínimos detalhes. Mesmo sendo sancionado pelo Rei, havia todo um processo judicial que poderia arrastar-se por semanas ou meses. Acusado e acusador deveriam entregar seus relatos ao parlamento, que somente depois de minuciosamente analisado e ouvirem-se as testemunhas, é que seria tomada a decisão se haveria ou não um combate.

No caso em questão, mesmo após o parlamento ter aprovado o duelo, o Rei havia pedido um adiamento, já que estaria em campanha contra a Inglaterra e desejava presenciar o combate. E durante todo esse período, tanto Le Gris quanto Carrouges não podeiram deixar Paris, às suas próprias custas.

Para Marguerite, o resultado do combate também era importante. O duelo era visto como o julgamento de Deus na Terra, já que Deus era bom e verdadeiro, logo, o vencedor só poderia estar dizendo a verdade. Se Carrouges perdesse, significaria que Marguerite havia dado falso testemunho, crime punível com morte pela fogueira.

O fato dela estar grávida também não deveria ajudar nem um pouco, já que não deveria ser nada confortável estar nos últimos dias de gravidez e longe de casa. Some-se a isso o fato de que o período da gravidez coincidia com os meses que se passaram desde o estupro. A dúvida sobre ser seu filho ou não que a esposa carregava também deve ter servido apenas para aumentar a fúria de Carrouges.

Fúria que ele finalmente pôde consumar em combate, no dia e local marcados. Havia todo um ritual para realização do duelo, que era cumprido à risca, e as partes deveriam estar prontas para continuar o duelo no dia seguinte, caso não se chegasse a um resultado antes do pôr do sol.

Apesar de ser comum que o público assistisse (até mesmo crianças), não era permitido que se fizesse qualquer som, voluntário ou não, de maneira que quem descumprisse o costume poderia ser morto na mesma hora. Portanto, tudo que se ouvira era o clamor das espadas e os grunhidos dos combatentes.

Apesar de gravamente ferido na perna, Carrouges conseguiria subjugar seu inimigo e conseguir sua ansiada vingança. Marguerite, na ocasião toda vestida de preto, seria libertada e os dois retornariam livres ao lar, para desgosto de muitos que tinham Le Gris como favorito. Diz-se que anos depois um homem à beira da morte teria confessado o estupro de Marguerite, mas o autor afirma que provavelmente se trata mais de boatos do que qualquer outra coisa, já que não há prova alguma do fato.

O Último Duelo ficaria famoso em toda França e mesmo fora dela e muito se falaria ainda sobre a disputa de Carrouges e Le Gris nos anos seguintes.

O Filme

Dirigido por Ridley Scott, a película tem Matt Damon como Jean de Carrouges, Adam Driver como Jacques Le Gris, Jodie Comer como Marguerite e Ben Affleck como Pierre d’Alençon.

O filme acerta em não ser um documentário como o livro, dramatizando as situações e dividindo-o em três partes: a visão de Carrouges, e visão de Le Gris e a visão de Marguerite.

Evidentemente, como sempre acontece em adaptações, alguns fatos são abreviados e alterados para os propósitos dramáticos. Por exemplo, a morte da esposa e filho de Carrouges é comentada apenas de relance, enquanto que a terra do pai de Carrouges também é dada a Le Gris, além de Aunou-le-Faucon, o que não acontece na realidade.

Apesar de apresentar as três visões ser uma boa sacada, a narrativa pode acabar ficando um pouco cansativa, dada a repetição de cenas, ainda que com diferenças sutis entre elas. A cena em que Carrouges e Le Gris se reconciliam e Marguerite beija Le Gris, por exemplo, é vista três vezes no filme todo.

Mas é interessante começar com Carrouges, que se acha o herói da história. Em sua visão, ele salva a vida de Le Gris, para depois ser prejudicado. Também com relação a Marguerite, ele se vê como um esposo justo, amoroso e bondoso, que parte para defender sua honra.

Na visão de Le Gris, é ele quem salva a vida de Carrouges e procura falar bem do mesmo para o Conde. Não parece desejar mal ao amigo, mas este é constantemente visto como encrenqueiro e raivoso. Não fizera nada para prejudicá-lo, mas também não negaria os terrenos e cargos que o Conde decidira lhe presentear.

Também, é claro, não vê o ataque a Marguerite como estupro, pois estava apaixonado por ela e, em sua visão, ela também queria consumar o ato, já que estava acostumado a forçar-se sobre mulheres apesar de repetidos “nãos”. Inclusive quando está prestes a morrer e Carrouges exige sua confissão, ele afirma “Não houve estupro, Carrouges”, como se realmente acreditasse nisso.

Já a ideia de terminar com a visão de Marguerite é genial. Por seus olhos, vemos que Carrouges não era esse santo que ele deveria imaginar de si mesmo. É claro que ela era muito bonita, mas o cavaleiro provavelmente casara com ela mais por interesse em ampliar suas terras do que qualquer outra coisa, como era muito comum na época.

Também nessa visão vemos o temperamento de Carrouges e percebemos que ele era um homem egoísta e que fazia pouco caso do que houve com sua mulher, o que pode ser entendido por sua reação ao saber do crime praticado por Le Gris: “Esse homem não faz nada além de me prejudicar?”.

Logo em seguida, exige que Marguerite se deite com ele, o que só confirma que ele não estava nem aí para os sentimentos dela. Tanto que a mesma só descobre da possibilidade de ser queimada viva quando está dando seu depoimento à corte.

Depoimento esse que talvez seja uma das partes mais chocantes do filme todo. Não só pelo fato de ela ter de repetir a história do estupro inúmeras vezes na frente de todo mundo. Mas na Idade Média acreditava-se que a mulher não poderia conceber se não sentisse prazer na relação sexual. Ela então tem que explicar que sente prazer na relação com o marido, mesmo não tendo concebido meses após o casamento.

E o pior, ter de explicar que não sentiu prazer nenhum no estupro.

E ainda há quem diga que chamar essa época de Era das Trevas é um exagero. Entendam, isso era a “ciência” da época. E como se não bastasse, já aos prantos depois de tudo isso, é nesse momento que a corte explica que se ela estiver mentindo e seu marido perder o duelo, ela será queimada viva.

No filme, obviamente todo o processo judicial é abreviado e o duelo se dá pouco depois de vermos o depoimento de Marguerite. Bastante parecido com o descrito no livro, mas é claro, com algumas alterações para efeitos dramáticos.

O combate começa com o duelo de lanças. No livro eles se batem três vezes antes de quebrarem as lanças e passam para os machados, ainda em cima dos cavalos. No filme, eles se batem duas vezes e já vão para o chão.

Tirando o suspense provocado pela troca de golpes exaustiva, Carrouges realmente fora ferido na coxa, mas Le Gris comete o erro de tirar sua lâmina do local da ferida e se afastar, ao invés de dar o golpe final. Carrouges viu então a oportunidade de contra-atacar, aproximando-se de um perplexo Le Gris e lançando-o ao chão.

E no chão é que se dá a resolução do confronto. A descrição dos momentos finais se dá de forma mais detalhada no livro, com o autor descrevendo o desespero de Le Gris ao procurar por sua espada no chão, a dificuldade que ele devia estar tendo de respirar atrás de seu capacete, o peso da armadura. Nesse ponto acho que o filme peca, pois seria muito mais dramático termos a visão de Le Gris e Carrouges nesses momentos finais, do que simplesmente ver o Matt Damon enfiando sua faca na garganta do Adam Driver.

Não obstante, o resultado é o mesmo: Carrouges vence, Marguerite é libertada e o corpo de Le Gris é arrastado e pendurado na cidade, para todos testemunharem a vergonha do criminoso.

O Último Duelo é realmente uma história emocionante e tem momentos tão absurdos que a ser chega difícil de acreditar que tenha sido verdade. Mas foi, e atravessou os séculos. Para quem quiser conferir, o filme está disponível no Star+.

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